domingo, 9 de setembro de 2012

CONTOS DE INSÔNIA - PARTE 1

Há alguns anos enviei um conto meu para uma jornalista amiga, que o publicou em uma página do G Magazine online. Hoje eu retrabalho o texto e vou publicar em duas partes aqui em meu bloguezinho. Espero que amig@s acessem e leiam e comentem. Será um prazer imenso!

NOITES DE INSÔNIA - Parte 1

     Se pego o cigarro, ele me queima a mão com a consciência dos anúncios do câncer inevitável. Estou procurando uma saída, olho em volta e só vejo o maço sobre a cadeira. O fósforo queima, a brasa lúbrica me envolve com seu olhar. A fumaça desliza pela garganta, e em seguida sai, em estranhas nuvens acinzentadas. Suspiro, busco o chá e tomo um gole. As manhãs são como noites de inverno, escuras e frias, e meus dedos doem. Alcanço a xícara, o chá esfria lá dentro, observo a vida que alguém sabe ler na borra. Penso: se hoje bebo conhaque, me recrimino. A culpa. Do chocolate, do refrigerante, das madrugadas insones. Carne gorda, embutidos. Todas as pessoas que conheço são magras e saudáveis e malham na academia, lindos bofes bombados lindas sereias de silicone. Todos corpos sem alma, bem ao gosto do século XXI.
     Nem me dou ao trabalho de olhar-me ao espelho. Já sei o que existe do outro lado, a mulher murcha, inexpressiva, olhos vazios, os cabelos que caem como todos os outros cabelos um pouco acima das orelhas, outros teimosos que esvoaçam sobre os olhos. Puxo para trás das orelhas. Haverá vida após a morte? Onde se escondem as almas dos mortos? Estarão aqui me rodeando e rindo de meus pensamentos? Ainda sou daquelas pessoas que põem pijamas para dormir, e vago pelo apartamento em busca da escuridão, enquanto o peito sufoca. Acumulo medos. Imagino aquele monte de almas em volta de mim me espreitando, avanço com os braços como a abraçá-los e em seguida os expulso. Abro a porta e digo: saiam, saiam já! Algumas vezes a vizinha da direita abre a porta e me olha com um olhar estranho e confuso, visivelmente incomodada pela visão daquela mulher de meia idade, de pijamas, a falar sozinha pelos corredores do prédio. Murmura um: boa noite - ou algo assim - e desaparece febril antes que eu a detenha. Fique, fique, eu poderia – eu deveria – dizer a ela: venha conversar um pouquinho, fique aqui comigo, não vá embora. Eu a seguraria pelo braço e contaria longas histórias. Ela, e nem sei seu nome, ela que mora aqui há quase tanto tempo quanto eu, quinze anos, me olha assustada e sem jeito, pede desculpas com o olhar, por estar tão próxima. E eu, quase tão íntima, quase tão sua, bastava estender a mão. Eu a tomaria pelo braço macio - acho que seu braço é macio - e contaria a ela como são meus dias, como são minhas noites, mas tenho a impressão de que ela sabe, porque algumas vezes escuto sons também. Acho que ela põe o ouvido atrás da parede para escutar. Às vezes meu ouvido coincide com o dela num ato curioso. Às vezes, faço barulhos para ela ouvir.
     Acendo outro cigarro. Vejo a foto da mulher na cama de hospital com os tubos, um esqueleto humano, o ministério da saúde adverte, mas dou mais uma tragada transgressora. Para fora da janela a neblina leve começa a dar sinais do dia e as gotículas vão desaparecendo da vidraça. Ouço a música que vem do apartamento ao lado, o garoto do apartamento à esquerda liga um jazz antes de ir à escola. Aproveito o prazer. Não faz frio nem calor, aqui dentro a temperatura é morna e amorfa como eu, puxo a gola do pijama para cima para proteger as orelhas porque vi num filme. A protagonista usava um pijama de homem igual ao meu e levantava a gola para proteger-se do frio. Mas aqui não faz frio e eu me protejo da solidão ao levantar a gola que a vizinha da direita, em meus pensamentos, não levantou comigo, ao escutar as coisas que eu tinha para lhe contar.(continua)

 

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