quarta-feira, 16 de outubro de 2013

CONTO: BERENICE


Berenice andou olhando os dedos dos pés e das mãos e viu que eram mais curtos que o de Juliana. Por que eram mais curtos que o da amiga? Não podia ser dessa forma. Ela não gostava daqueles dedos curtinhos e gordos, pareciam batatinhas de aperitivo. A tarde não caminhava, já fazia horas que estava ali e o relógio não acompanhava. Três da tarde e já faz um tempão que estou aqui bestando. Não se pode fazer de conta que se está estudando por muito tempo. As pálpebras começam a pesar tanto e todos os bichinhos e a poeirinha da mesa parecem sempre tão mais interessantes! O livro, ai, coitado, o livro. De quê mesmo? Geografia. Geografia de lugares que não conheço, pensou Berenice, pouco alerta. O pigarro soou alto a seu lado. O hábito preto roçou na carteira. Com o rabo dos olhos Berenice fingiu estar lendo, atenta. Você está entendendo a lição, Berenice? Sim senhora, claro. Claaaaaro que estava. Tuuuudo. Pensou. Tem pergunta para responder? Tem, vou pegar já o caderno. Vou jááááá pegar o caderno. Ô,ô,ô, caramba, ela não sai do meu pé. Por que a Juliana é tão inteligente? Eu estou aqui que não posso nem abrir os olhos, não me interessam esses lugares que não sei o que são, nem onde ficam. Também não me interessa saber! Por que ela sabe tudo? É tão especial! Eu não consigo essa força de vontade dela. E ela nem gosta de geografia. Será que faz de conta e consegue? Eu, nem fazendo de conta. Pareço tão pequena. Até meus dedos, curtos. Berenice olha em volta e não vê saída. Não dá para fugir. Para fumar no banheiro? Meus olhos buscam os de Juliana. Não me vê. Ela está lendo mesmo. Será? Ou estará pensando como eu em coisas que não devemos pensar neste momento? Bom, não dá para adivinhar. Ela é bonita. Seus cabelos são meio avermelhados, parece. Tinta? Cabelos longos e lisos. Ela é gordinha, acho, um pouco. E preguiçosa. Eu gosto tanto de correr! Queria correr lá fora, ver as árvores do pátio. E esse urubu de saias do meu lado. Pomba! Nem dá para sonhar um pouco. Estudo é uma porcaria. Eu gosto de ler, mas fotonovela. É legal. Gosto também de romances com muitas fofocas no meio. Gosto de saber da vida dos outros. Leio muito, no meu quarto. E leio o que gosto. Geografia, não. Não viajo muito. Não quero saber por que o clima aqui é assim ou assado. Não quero fazer gráficos. Que estupidez! E o professor acha que abafa. Agorooooora, meus amigos, vamos fazer um grááááfico. Peguem seus compaaaassos e a folha milimetraaaaada. E o urubu não desgruda. Juliana, me olha! Vamos fumar no banheiro? Pomba, que droga! C.D.F.! Não tira os olhos do livro. Aposto que não está estudando nada. Ai, hoje vai dar cinco da tarde, mas não dá quatro! Caramba, estudo é uma droga! A do hábito não me larga do pé. Berenice levanta a mão. A freira se encaminha para ela, o que é minha filha? Estou apertada, preciso ir ao banheiro. Pode ir, minha filha, mas não demore, sua mãe recomendou que você estudasse muito para a prova da próxima semana, suas notas vão mal. Vão maaaaaallll. Idiota. Não me interessa o que minha mãe quer, também. E o professor com a cara de bobo, com essa matéria boba! Berenice se levanta e se dirige ao pátio. Lá fora as árvores cheias de folhas tão verdinhas convidam ao devaneio adolescente. Cara de bobo. Dar prova logo no dia seguinte ao aniversário do Marquinho! Vamos aaaaarraaaaasar naquela brincadeira que a mãe dele disse que ia dar. Dançar, flertar. Fumar. Vou fumar, cadê a bituca? Ah, tá aqui escondidinha no sutiã. Berenice acende a bituca e traga uma tragada profunda de fumante antigo. Tosse. Que merda, bituca é ruim prá burro. O toco vai para o vaso sanitário, Berenice dá a descarga. Lava as mãos e o rosto, enxuga cuidadosamente olhando-se no espelho. Volta rapidamente ao estudo um pouco zonza da fumaça tão fortemente aspirada. Sente náusea. Fica pálida. Não estou me sentindo bem, irmã. Posso sair um pouco? Que foi, minha filha, você comeu bem no almoço? Comeu carne de porco? Comeu muito chocolate? Ai, que interrogatório chato! Não, acho que é por que fiquei mocinha estes dias. Descanse um pouco, tome um copo de água. Que besteira, nem sei por que fui fumar. Droga. Juliana me olha agora. Agora, não é, sua palerma? Adianta me olhar com essa cara de tonta? Levanta-se e se aproxima de mim. Irmã, posso ajudar? Vou dar uma volta com ela no pátio, com ar fresco vai se sentir melhor. Bem, filha, se precisar, chamaremos a mãe dela para buscá-la. Ai, que sonsa você é, me deu vontade de rir, o urubu não ia dizer não. O que você disse? Que tinha ficado menstruada. Assim, menstruada? Não, que tinha ficado mocinha. Ah, riu Juliana. Suas bochechas cheínhas riram também. Olhei seus dedos mais compridos que os meus. Sentamos no banco do pátio e olhamos as árvores tão verdinhas. Quase quatro horas, disse Berenice. Já deu a fita. Abraçou a amiga. Juliana segurou-a pelo braço e retornaram ao estudo.

2 comentários:

  1. Tudo o que rola numa cabeça. Você consegue " ambientar" muito bem. Senti o gosto da tragada forte naquela bituca...rs.. ( você é ótima. Gosto dos seus contos!!)

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  2. Nossa, Bau, como você conseguiu descrever os sentimentos de uma adolescente desinteressante! Consegui ver a Berenice de uma forma bem medíocre, bem o tipo chatinho de muitos adolescentes pouco estimulados pelos seus cuidadores. Amei!!! ( Alê)

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