quarta-feira, 9 de outubro de 2013

CONTO: A BOCA DO DRAGÃO



Subitamente um vulcão explodiu dentro dela, o mal estar, o suor em abundância surgindo pela testa, pescoço, buço, as axilas molhadas e as faces em fogo, a insuportável sensação de haver caído na boca do dragão, de estar expiando os piores pecados, até as pequenas malícias da mais recôndita memória, nas grelhas do próprio inferno, no garfo do próprio demônio. Aquele que se aproximasse era o inimigo, trazendo em si mais chamas, nada que pudesse acalmar a fornalha acesa a queimar aquele amontoado de carnes, prisão indecifrável de estranhas dores.
     
Pensamentos confusos cruzavam seus sentidos, culpas, acusações, terrível desejo de matar ou morrer depressa, depressa, para não mais ter que se enfrentar com esse limite do desejo, tudo havia sido tão efêmero. Lágrimas de revolta uma vez mais lhe escorreram pela face, pingaram na toalha de mesa. Bateu várias vezes com as mãos espalmadas sobre a mesa, numa tentativa vã de apagar o fogo, como se o abanar dos dedos e das palmas pudesse espantar os tortuosos caminhos de seus delírios.
    
Sentiu o ódio dominá-la, passou os olhos pela fruteira e odiou o vermelho, pois paixão, odiou o amarelo, pois fálico, odiou o verde, pois não-nato, odiou a toalha de mesa porque era ela que, todos os dias, congregava aqueles seres ruminantes, com seus dentes largos, suas piadas comuns, sua cansativa vulgaridade doméstica, a comida dissolvida nas bocas que pediam, reclamavam, exigiam, sugavam.

O suor dominava sua vontade, pano de toalha na mão esticou as pernas sob a mesa, pôs a cabeça para trás, levantou o cabelo num gesto de impaciência, enxugou o rosto e o pescoço e, com as costas da mão, fez um gesto de mulher fatal, passando-a de leve sobre os olhos semicerrados, boca um pouco aberta como a pedir um beijo.

Com o peito arfando em compasso com o relógio da copa, puxou o decote para baixo com volúpia de amante, destapando os seios. Passou as mãos sobre eles, tocando os mamilos escuros com a pontinha dos dedos. Arrepiou-se ao pensar na sensação das bocas que alimentou ali. Sentiu dor, asco, amor, sentiu-se violada. Os olhos embaciados, não mais sabia se de suor ou das lágrimas, sentiu culpa. Dentro de si desejava que suas filhas nunca dessem seus seios às criaturas.

Sentiu que aqueles seres ao redor da mesa lhe deviam a juventude que se ia, deviam-lhe o corpo flácido, os seios vazios, amaldiçoava os calores terríveis que sofria sozinha. Deviam-lhe, todos eles, o tempo em que a mera visão de uma borboleta a fazia tremer de emoção e prazer e seu corpo jovem tinha odor de flores do campo. Quis creditar as lágrimas derramadas nos panos brancos dos travesseiros - aos poucos amarelecidos pelo contato das peles e das salivas – todos os quantos sonhos afogados nesses confidentes discretos, parceiros incontestes de furtivas ilusões.

Com um suspiro de cansaço e pavor, o rosto em brasa, percebeu que chegava a hora do almoço. Cheia de culpa e medo levantou-se ligeira, arrumou a blusa, enxugou o rosto, os olhos, olhou-se no espelho e ajeitou os cabelos. Sem levantar os pés arrastou-se até a cozinha e pegou o frango sobre a pia.

(Este conto já foi anteriormente publicado na Revista Eletrônica Labrys, da UnB, disponível em: http://www.tanianavarroswain.com.br/labrys)

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