Hoje você
olhou para mim e me convidou a tomar um chá, chá inglês com bolachas ou
torradas, você sabe que sou louca por bolacha com chá. Aí não resisti e tomei
também o vinho. Tomei o chá, o vinho e comi as bolachas. Acho que não foi nessa
ordem, acho que comecei com o chá inglês e aí conversamos sobre tudo o que
poderíamos conversar sob a aura de um twinings, nós temos sempre tanto que
falar! A bandeja sobre a mesa de centro, a mesa de madeira trabalhada da Índia,
sempre achei aquela mesa linda, não sei se foi sua mãe que trouxe, ou se foi
presente de casamento dos seus avós, estou só especulando porque não sei nem se
foi você mesma que comprou por aí, pode ter achado bonita, porque é mesmo,
então acabou comprando e colocando em sua sala, onde tomamos este chá e
conversamos sobre, sobre, sobre, nós? A porcelana fina bate nos dentes bem de
leve, sorver o chá delicadamente como convém a uma fina dama. Será? Bater nos
dentes, não deveria. Rio contente ao perceber o sorriso de seus olhos, nós que
nos entendemos tão bem. Sinto o fluir e o refluir das palavras e de nossos
sorrisos, e nem temos tempo de escutar uma à outra. Você me escuta? Açúcar ou
adoçante? Adoçante, melhor para nós que já não somos mocinhas. E a conversa
alonga-se e adensa-se, encurtam-se os períodos, adoçam-se os movimentos,
recrudescem-se os comentários. Quanto mais longos, mais suaves, quanto mais
curtos, mais duros, às vezes lágrimas, um pouco veladas, às vezes um suspiro
mais forte, às vezes o deboche claro. Palavras às vezes cruéis. Compreendemos
os silêncios, as pausas e retomamos o chá, ainda quente, as xícaras de
porcelana, imóveis, na bandeja escura, sobre a linda mesa de madeira
trabalhada. Aí nos servimos de um pouco de bolacha. Você, a anfitriã, eu não
poderia ignorar. Ofereceu-me gentil, avancei sem muito pejo. Não foi muito
fino, acho que tinha fome. Não, adorava aqueles biscoitos, essa era a verdade.
Adorava aqueles biscoitos. E o mais gostoso, horror dos horrores, molhar o
biscoito no chá. Mas não molhei. Fingi educação. Parei o movimento, levei a
bolachinha à boca, devorei-a com gosto. Sorvi um gole de chá inglês na xícara
de porcelana fina. Desta vez sem bater os dentes. Suspirei. Manjar dos deuses.
E a conversa, interrompida pela etiqueta, foi retomada. Você versava sobre,
sobre, sobre você, contava suas histórias, suas façanhas, as viagens, os
trabalhos, os homens, a carreira, eu versava sobre, sobre, sobre mim, contava
minhas histórias, minhas façanhas, contávamos, falávamos e ríamos, e nunca
parávamos de falar e rir e chorar veladamente os pequenos segredos escondidos
no bule. Foi nesse momento que você se levantou e decidiu: vamos tomar um
vinho. Vamos, não precisou falar duas vezes as taças e nós vertendo aquele
líquido denso e escuro para dentro do cristal transparente e para dentro de
nossas almas. Primeiro começou a descer lento, escorregando viscoso pelas
paredes de nossas gargantas que contavam tantas coisas, que perscrutavam tantas
coisas. O biscoito acompanhou uma vez. A conversa fluía cada vez mais densa,
como a viscosidade do vinho. Pegava na superfície das palavras e deixava uma
nódoa impossível, e quando nos demos conta a segunda garrafa estava aberta e
nós estávamos quase dentro dela, já como o gênio da garrafa, e a conversa
continuava um pouco difícil, pastosa, ríamos do que não entendíamos, e algumas
lágrimas desciam pela face das agruras da vida afinal a gente já tantos anos.
Tanta vida. Nos demos conta da hora e da embriaguez de repente, quando
silenciamos ao mesmo tempo e o tempo parecia não existir. A visão turva, o
gosto amargo na língua, as pernas pouco firmes, tentamos fingir. Neste momento
o estômago, frágil, dolorido, nos vimos como somos. Adorei o chá com bolachas.
E o vinho. Adorei mais o vinho que o chá? Ri, despedi-me. Hora em que todos os
gatos são pardos, saio à rua. Despercebidas lágrimas descendo pelo rosto, a
noite cálida, acariciando-me, avança impiedosa.
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Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirNossa, que conto lindo! Quanta metáfora, quantas possibilidades de leitura!
ResponderExcluirQuero ler tudo, tudinho, Bau.
Obrigada por compartilhar!
Alê!
Alê, seja sempre bem-vinda! Beijão!
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