quinta-feira, 10 de outubro de 2013

CONTO: CHÁ COM BOLACHAS


Hoje você olhou para mim e me convidou a tomar um chá, chá inglês com bolachas ou torradas, você sabe que sou louca por bolacha com chá. Aí não resisti e tomei também o vinho. Tomei o chá, o vinho e comi as bolachas. Acho que não foi nessa ordem, acho que comecei com o chá inglês e aí conversamos sobre tudo o que poderíamos conversar sob a aura de um twinings, nós temos sempre tanto que falar! A bandeja sobre a mesa de centro, a mesa de madeira trabalhada da Índia, sempre achei aquela mesa linda, não sei se foi sua mãe que trouxe, ou se foi presente de casamento dos seus avós, estou só especulando porque não sei nem se foi você mesma que comprou por aí, pode ter achado bonita, porque é mesmo, então acabou comprando e colocando em sua sala, onde tomamos este chá e conversamos sobre, sobre, sobre, nós? A porcelana fina bate nos dentes bem de leve, sorver o chá delicadamente como convém a uma fina dama. Será? Bater nos dentes, não deveria. Rio contente ao perceber o sorriso de seus olhos, nós que nos entendemos tão bem. Sinto o fluir e o refluir das palavras e de nossos sorrisos, e nem temos tempo de escutar uma à outra. Você me escuta? Açúcar ou adoçante? Adoçante, melhor para nós que já não somos mocinhas. E a conversa alonga-se e adensa-se, encurtam-se os períodos, adoçam-se os movimentos, recrudescem-se os comentários. Quanto mais longos, mais suaves, quanto mais curtos, mais duros, às vezes lágrimas, um pouco veladas, às vezes um suspiro mais forte, às vezes o deboche claro. Palavras às vezes cruéis. Compreendemos os silêncios, as pausas e retomamos o chá, ainda quente, as xícaras de porcelana, imóveis, na bandeja escura, sobre a linda mesa de madeira trabalhada. Aí nos servimos de um pouco de bolacha. Você, a anfitriã, eu não poderia ignorar. Ofereceu-me gentil, avancei sem muito pejo. Não foi muito fino, acho que tinha fome. Não, adorava aqueles biscoitos, essa era a verdade. Adorava aqueles biscoitos. E o mais gostoso, horror dos horrores, molhar o biscoito no chá. Mas não molhei. Fingi educação. Parei o movimento, levei a bolachinha à boca, devorei-a com gosto. Sorvi um gole de chá inglês na xícara de porcelana fina. Desta vez sem bater os dentes. Suspirei. Manjar dos deuses. E a conversa, interrompida pela etiqueta, foi retomada. Você versava sobre, sobre, sobre você, contava suas histórias, suas façanhas, as viagens, os trabalhos, os homens, a carreira, eu versava sobre, sobre, sobre mim, contava minhas histórias, minhas façanhas, contávamos, falávamos e ríamos, e nunca parávamos de falar e rir e chorar veladamente os pequenos segredos escondidos no bule. Foi nesse momento que você se levantou e decidiu: vamos tomar um vinho. Vamos, não precisou falar duas vezes as taças e nós vertendo aquele líquido denso e escuro para dentro do cristal transparente e para dentro de nossas almas. Primeiro começou a descer lento, escorregando viscoso pelas paredes de nossas gargantas que contavam tantas coisas, que perscrutavam tantas coisas. O biscoito acompanhou uma vez. A conversa fluía cada vez mais densa, como a viscosidade do vinho. Pegava na superfície das palavras e deixava uma nódoa impossível, e quando nos demos conta a segunda garrafa estava aberta e nós estávamos quase dentro dela, já como o gênio da garrafa, e a conversa continuava um pouco difícil, pastosa, ríamos do que não entendíamos, e algumas lágrimas desciam pela face das agruras da vida afinal a gente já tantos anos. Tanta vida. Nos demos conta da hora e da embriaguez de repente, quando silenciamos ao mesmo tempo e o tempo parecia não existir. A visão turva, o gosto amargo na língua, as pernas pouco firmes, tentamos fingir. Neste momento o estômago, frágil, dolorido, nos vimos como somos. Adorei o chá com bolachas. E o vinho. Adorei mais o vinho que o chá? Ri, despedi-me. Hora em que todos os gatos são pardos, saio à rua. Despercebidas lágrimas descendo pelo rosto, a noite cálida, acariciando-me, avança impiedosa.


3 comentários:

  1. Nossa, que conto lindo! Quanta metáfora, quantas possibilidades de leitura!
    Quero ler tudo, tudinho, Bau.
    Obrigada por compartilhar!
    Alê!

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